domingo, 19 de agosto de 2012

Visita de Viktor Schuldtt

Desastres de Guerra (1810-1815) - Goya




Pareço estar diante de uma escrita coberta, ao mesmo tempo, de negatividade e afirmação. Negatividade porque não consigo ler os poemas de Viktor sem que me ocorram palavras como “impossibilidade”, “sem saída”, “impasse”, “trágico”; e afirmação porque promove uma vertigem da linguagem e das sensações, e a percepção de que entre a coisa e a representação pode não haver uma fenda tão grande, tão intransponível. Como disse Barthes, “a expressividade é um mito, ela nada mais é do que a convenção da expressividade.” E eis que nos poemas de Viktor, assim me parece, o que se assemelha à busca de uma expressividade é, incauto leitor, um salto para além dela, uma tentativa de, nesse salto, furar a camada (desconhecida) que separa as coisas das palavras, o acontecimento de seu relato, sua interpretação.

Como todos os comentários que posto aqui no Musas, este é um relato pessoal de leitura, uma aproximação, e não é (nem pretenderia ser) um texto teórico no sentido convencional da palavra. Como leitor, busquei nestas notas breves compartilhar com quem, por meio delas, entrar em contato com a vigorosa poesia de Viktor Schuldtt, algumas das impressões e reflexões que esses versos inquietos me causam. Obrigado ao Viktor por visitar nosso bangalô virtual, mas que mesmo sendo virtual quer, em sua utopia, transpiração, sangue correndo nas veias, calor, integração e tudo que for humano. 

Para quem ainda não conhece, visitem o blog de Viktor Schuldtt, o Vade Mecum.

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XXXVII

Reconstrução (da guerra) após desmembrar no corpo da batalha

                                                                              
                                                                                      sem remontar a – simular – um real fixo
                                                                       constrói o teatro móvel de seu movimento,”
                                                                                                                       Julia Kristeva

Oblação: negróide-átomo em negociata intensa (desenlaça a maternidade e os fios de algodão de que se compõe) – frêmitos do novilho-lunar ulceram na acidez da cafeína: filhotes se desgarram (caem) diamantes lascados por uma metralha de dentadas – a manhã começa sempre oblíqua (belicosas unhas) tingida por aviões – o pescoço como o general que exibe medalhas em fitas azuis de cetim guarda o arranhão da prostituta e a lembrança de sua manhosa teia de conhaque

A face do texto se divide – corpos sonoros (cabelos-de-olhos humanos): criaturas se erguem como dádivas escarradas nas chuvas grossas          língua-feto          transmutar-atômico

Espelho mágico (anti-espelho): gravidez de mares – medusas – onde nascem (na concavidade uterina sob as rochas e as conchas) o peixe-presente – gota estilhaçada e deformada por mil espelhismos – desmanchável em pipas coloridas

E queria fazer do vento a droga (pílula branca que se dissolve na garganta molhada – luzes) que incentiva a distensão muscular sobre o asfalto: sair dos cobertores familiares como se fossem um submarino que não funciona e nadar e
                                                                                                                                                                  
nadar

O encouraçado entretanto era apenas uma cabeça a mais na fera quixotesca – tal eram os espinhos que vergavam na pele vindos de todas direções – em movimento a pomba-interfront que leva numa cápsula presa à pata o relatório que evidencia esqueletos descarnados sob bombas do pelotão

A necrópole age como imã assim como cresce a catedral barroca e todas suas figuras rugem ao mesmo tempo e rasgam toda possibilidade da carne sangrar além da órbita trespassada somente por pássaros alterados geneticamente (quem visse empalideceria como se acordasse por acaso no acolchoado de asas angelicais) – este sussurro divergiria do conhecido susto de acordar imerso na enxaqueca (pirâmide de gralhas sobre o corpo) esquecido das grutas das mãos das violações

Mas o personagem aqui focado só podia deixar o leite escorrer da peça de louça branca carregada de esperma – jazigos imensos retiam na sombra inchada pelo dossel de lírios o frio e a umidade da elástica carne do sapo – era na atmosfera desta manga suculenta ao drenar saliva que anjos nacarados choravam sobre os túmulos (e como podem vísceras míticas lacerarem em pranto a pureza absurda – impossível saber) e entre lágrimas de fuligem e fios de telefone vistos atrás do muro do cemitério (sobre a cidade) os manuscritos perseguiam vozes e mais vozes como as tosses inesperadas que brotam entre as ondas do conciso mar de uma sinfonia: projetar da peste sobre o jardim planificado

Só então soube – a morte não estava ali

Pomba apreendida no ar: enchente do tumor que mata este vidro agudo na impossibilidade de ser extraído





Olhos fechados – tato

O intelectual agora se debruça sobre o pergaminho e ajeita a pena molhada como peito de criança solta no temporal carregado da lascívia do mundo – os pingos negros (pegadas de lobos enrugando o areal branco) conduzem a um labirinto incólume de dedos humanos – a auréola de calor se intensifica no teto da vela expulsando o bafo de agulhas-luminescentes – um jasmim secreto cresce no interior da neve (membranas de visco que se acrescentam dentro do pulmão formando uma pedra de jade de múltiplas folhas) tocar este florir é introver – deflorar: o intelectual é a escuridão que o afaga irracionalmente: fecha os olhos e tosse seus passos escritos

O Tratado da Visão Intro-externa

A punção da áspide (copo aderente na forma de Â-
nus que vertido devora o dentro-fora argênteo-brilhoso da escuma-de-sangue acumulada em torno da íris) dilata – rare
                                                                                                                                        faz

Sol-sensório

inchaço de mamilos picados
em surdez aguda (rocio de a-
lho derramado sobre pele
ocrescuro do bife – frita)

O colo da água carregada num grito de vento choca-

se inteira e fechada na posição do olho ferido pelo sal – quebra-se a alva videira-chapada do ovo (fábula do ver) e no desespero condensado atrás das pálpebras tudo é uma dor maior de mariposa que queima perdida no dédalo florífero de chispas do palmital

As peles se ramificam na azul piscina cegamente horizontal: garotos se infiltram entre as costelas do congestionamento dentes cariados e movimentos espertos de felino ou víboras num bananal edificam a fulva estátua da infância rasgada e assim cor

re o tempo antes nos metais que se acariciam e impregnam de força que no relógio e a argamassa busca arestas para rastejar continuamente murmúrios nas veias da madeira (cremalheiras erguem criptas) – olha de fora num alheamento de fera farta uma face gotejante de gordura que se dissolve em colírios sobre uma murada de bar

Queima feno nas dobras articuláveis da música assim como o alimento se autogera tocando as uvas temporais para gerar ainda no útero vivo o fogo livre

Engasgado o céu desse conhecimento nodoso e liso feito para asas que são vistas e evaporam as fênix lilases se banham nas sombras ao voar respingam sêmen de petróleo sob o luar peçonhento das entranhas criadoras e além do trigo dessa cegueira viceja o recomeço no outro vértice do não-ver

Pousa acordado com plantas-coisas evanescentes – duráveis


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